ARTIGO - Depressão e Comportamento Suicida

 





 Depressão e Comportamento Suicida: Atenção Primária em Saúde

Lucimara Silva Magalhães

Sônia Maria Oliveira Andrade

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Psic. Jackson Maier - Neuropsicanalista e Psicoterapeuta - ACESSE AQUI


Resumo


Este estudo buscou contextualizar a depressão tendo como desdobramento o comportamento suicida. 

O estudo foi direcionado a 25 pacientes, contudo, na ocasião da visita domiciliar, nos deparamos com situações tais como: internação, óbito, reclusão de liberdade, recusa, e relato de simulação de suicídio. 

Diante do exposto, a entrevista foi efetivada com nove participantes, com idades variando de 18 a 61 anos, atendidos na Atenção Primária de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. Trata-se de pesquisa qualitativa, realizada de março a julho de 2015, em que se empregou a entrevista semiestruturada. Os dados foram analisados utilizando-se o método do discurso do sujeito coletivo, baseado na teoria das representações sociais. A análise dos dados trouxe o indicativo de três ideias centrais: antecedentes familiares; antecedentes pessoais e questões espirituais, constatando que a depressão e comportamento suicida são carregadas de estereótipos e revelam questões biopsicossociais.


Introdução


A depressão pode ser considerada um dos principais transtornos de nossa época, cuja causa específica não pode ser atribuída a um único fator, pois, como na maioria dos problemas humanos, é mais adequado falar em multifatores que se interrelacionam e geram, como respostas, alguns comportamentos que o indivíduo apresenta em seu meio (Baptista, Baptista, & Dias, 2001). Silva, Furegato e Costa Junior (2003), com base em relatórios da Organização Mundial de Saúde, destacaram a depressão como uma das formas mais comuns de transtorno afetivo, sendo uma das doenças com maior frequência na atenção primária, com cerca de 10,0% de todas as novas consultas.

Dentre seus desdobramentos (bipolaridade, síndrome do pânico, esquizofrenia) está o comportamento suicida, “Estima se que aconteçam em todo o mundo um milhão de mortes por ano decorrentes do suicídio, o que equivale a uma morte a cada 40 segundos” (Chiaverini, 2011, p. 130).  Dockhorn e Werlang (2008) informam que, conforme dados da Organização Mundial de Saúde, para cada suicídio há, em média, cinco ou seis pessoas próximas ao falecido que sofrem consequências emocionais, sociais e econômicas. E ainda, 1,4% do ônus global ocasionado por doenças, em 2002, foi devido a tentativas de suicídio, estimando-se que chegará a 3,2% em 2022.

Há perspectiva de um país populoso, como o Brasil, já entre os dez maiores em número de suicídios que entre as pessoas gravemente deprimidas, 18,0% se suicidam (Brasil, 2016).

O comportamento suicida refere-se ao estado em que a pessoa passou pelo processo de ideação e intenção, e já realizou uma ou mais tentativas de suicídio. É o ato de causar lesão a si mesmo, independentemente do nível da lesão e da motivação. Pode se conceber por comportamento suicida pensamentos de autodestruição, e atitudes de autoagressão capaz de levar à morte (Fráguas Júnior & Figueiró, 2005).

Dados do Sistema de Informação de Mortalidade, do Ministério da Saúde brasileiro, indicam o suicídio dentre três principais causas de mortalidade violenta (Waiselfisz, 2014).Em revisões de literatura, a depressão aparece como o mais relevante fator explicativo das tentativas de suicídio, ou seja, se não diagnosticada e tratada, tem desdobramentos (Minayo & Cavalcante, 2015).Proceder à caracterização do comportamento suicida em usuários da atenção primária torna-se relevante devido ao aumento da procura por usuários pelo atendimento e a solicitação da rede, às dificuldades da atenção especializada e à inexistência de ações próprias da atenção primária para a abordagem e cuidados adequados a essa clientela.

Pacientes com comportamento suicida têm histórico de negligências tais como: privação de alimentos, roupas, abrigo, castigo físico, abuso sexual, entre outros traumas na infância e adolescência, situações essas caracterizadas como fatores situacionais em eventos que lhes provocam depressão, melancolia e tristeza (Beeston, 2006).

Outras situações de ordem interna, o transtorno mental, em algumas situações, pode ter como desdobramento o suicídio. O suicídio é um fato complexo, tem múltiplas causas, sendo de difícil aceitação cultural (Holkup, 2003).Apesar da importância, o tema é relativamente pouco estudado e sua expressão para os profissionais da saúde é identificada como de difícil abordagem devido ao envolvimento das questões subjetivas.

As diversas manifestações dos transtornos mentais, tal como a depressão e seus desdobramentos, têm sido relacionadas a situações traumáticas vivenciadas na infância com base no tipo negligência, duração e o vínculo existente com o agressor (Baptista et al., 2001; Brasil, 1990; Durkheim, 2011).

Psic. Jackson Maier - Neuropsicanalista e Psicoterapeuta - ACESSE AQUI

A situação de violação de direitos na infância, na maioria das situações, ocorre dentro do núcleo familiar, contudo a família extensa, ou ampliada, aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade, aparece nessas situações como elo mais forte proporcionando acolhimento, minimizando os danos e possibilitando reabilitação (Fonseca, 2006; Leão & Castro, 2013; Sarti, 2011).

As ações de saúde mental na atenção primária devem obedecer ao modelo de rede de cuidado, com outras políticas que busquem o estabelecimento de vínculo. Essas ações devem estar fundamentadas nos princípios do Sistema Único de Saúde e nos princípios da Reforma Psiquiátrica, cuja responsabilidade compartilhada exclua a lógica do encaminhamento, e a ampliação da clínica na equipe signifique o resgate e a valorização de outras dimensões, que não somente a biológica (Brasil, 2006; Starfield, 1998).

Diante desses elementos e da magnitude da questão, o objetivo deste estudo foi caracterizar o comportamento suicida através da análise de discurso do paciente.



Método


Realizou-se pesquisa qualitativa, na atenção primária do município de Campo Grande, MS, com paciente notificados com tentativa de suicídio (Minayo, 2013).O levantamento de dados secundários foi realizado junto às fichas de notificação do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) – violência doméstica, sexual e/ou outras violências –, cujas notificações são sistematizadas pelo Núcleo de Prevenção às Violências – Individual, Violência Doméstica, Sexual e Outras Violências, da Secretária de Saúde do município em questão.

Foi disponibilizado o acesso aos dados e autorizada a entrevista com os pacientes notificados com tentativa de suicídio, na ocasião totalizando a média de 25 casos no período de 30 dias, para uma população de 786.797 pessoas, conforme o Censo 2010 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2014).

Todos os pacientes notificados foram convidados a participar da pesquisa, contudo, na ocasião das abordagens e visitas domiciliares para efetivação do convite, nos deparamos com situações tais como óbito, internações em hospital psiquiátrico, mudança de endereço, reclusão, desistência, recusa e simulação da tentativa de suicídio, menores de idade, pessoas interditadas judicialmente, e aquelas que tinham dificuldade para entender ou responder às perguntas. Dentre os 25 pacientes, 16 foram excluídos do estudo devido às situações supramencionadas.

Diante do exposto foram incluídos como participantes da pesquisa nove pessoas notificadas com indicativo de tentativa de suicídio pelo SINAN.

Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro de entrevista contendo dados de identificação (sexo, faixa etária, renda familiar, tempo de estudo) e três questões dissertativas. O roteiro de entrevista estabeleceu a identificação dos participantes incluindo sexo, idade, tempo de estudo e renda familiar, teve como intenção saber sobre a situação, tentativa de suicídio pela qual o paciente passou; este questionamento trouxe à tona o histórico de vida dos entrevistados, com destaque para três ideias centrais: questões espirituais, antecedentes familiares, antecedentes pessoais. Neste artigo, abordaremos a ideia central relativa aos antecedentes pessoais, que foram os maus tratos na infância com destaque para o abuso sexual relatado por um terço dos participantes.

Psic. Jackson Maier - Neuropsicanalista e Psicoterapeuta - ACESSE AQUI


Dentre as perguntas que compõem o questionário, somente a primeira foi utilizada para aprofundamento deste estudo específico. A amostragem se deu por conveniência, sendo realizada ao menos uma entrevista semiestruturada em cada região urbana do município, em sistema de rodízio, até atingir a compreensão do fenômeno estudado.

As entrevistas foram realizadas, na residência ou na unidade de saúde, conforme preferência do participante desde que lhe fosse mantida a privacidade: três optaram pela realização na residência, e os demais, nas respectivas Unidades Básicas de Saúde. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas na integra, sendo mantida a confidencialidade das informações.Após a transcrição, foram identificadas as expressões-chave em cada entrevista e a ideia central (antecedentes pessoais) correspondente ao discurso do sujeito coletivo (Lefèvre & Lefèvre, 2010).

Antes da aplicação da entrevista, os participantes convidados e que aceitaram ser incluídos como sujeitos, foram informados sobre a pesquisa, objetivos, metodologia, inexistência de risco, benefícios, a razão de sua escolha como participante. Após as informações e a concordância em participar da pesquisa, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Cabe ressaltar que foi acordado termo de compromisso para utilização de informações de prontuários em projetos de pesquisa, junto a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, e emitida autorização da Secretaria Municipal de Saúde Pública de Campo Grande, MS.

A pesquisa não oferece risco aos participantes no que se refere aos benefícios, e atende a Resolução n. 466, de 13 de junho de 2012, do Conselho Nacional de Saúde: “V.2 - São admissíveis pesquisas cujos benefícios a seus participantes forem exclusivamente indiretos, desde que consideradas as dimensões física, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual desses” (Brasil, 2012).

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Processo n. 088896/2013, sendo submetido em 7 dezembro de 2013, e aprovado em 28 de fevereiro de 2014, número: CAAE 23775713.8.0000.002.


Resultados e Discussão


O estudo foi direcionado a 25 pacientes, contudo, na ocasião da abordagem, nos deparamos com situações tais como: internação em hospital psiquiátrico, mudança de endereço, óbito, não comparecimento a entrevista, paciente recluso de liberdade, recusa, e relato de simulação da tentativa de suicídio. Diante do exposto a entrevista foi efetivada com nove participantes, sendo oito mulheres, destas, três na faixa etária entre 18 e 30 anos, duas com idade entre 31 a 40 anos, uma com 51 anos e duas com mais de 61 anos; e um paciente do sexo masculino, com 19 anos.

No que se refere à renda familiar dos nove entrevistados, sete relataram ter renda familiar de um a dois salários mínimos; os outros dois entrevistados, de dois a três salários mínimos. Em relação à escolaridade, cinco têm o Ensino Fundamental incompleto; um, Ensino Fundamental completo; dois, superior incompleto; e um com ensino superior completo.


Traumas na infância e desdobramentos


O estudo sobre a questão incitou o questionamento sobre a patologia na percepção do paciente, cuja ideia central foi extraída das respostas dos participantes, com base no questionamento: situação de tentativa de suicídio pela qual passou; desvelado histórico de vidas marcado por traumas de infância; violência com destaque para antecedentes pessoais.

Em antecedentes pessoais, quatro participantes destacaram aspectos da sua própria história de vida com ênfase para o conflito familiar citando traumas de infância; destes, três mencionaram o histórico de abuso sexual na infância.

Estudos demonstram que, quando pessoas se autoagridem, elas tendem, à medida que aumenta a idade, a usar meios de letalidade mais intensos, e planejam as situações com maior riqueza de detalhes objetivando a morte (Durkheim, 2011; Conwell, 2015; Linden & Barrow, 1997).

O relato a seguir está exposto na forma do discurso do sujeito coletivo: Meu irmão abusava de mim quando eu tinha 5 anos, eu lembro como se fosse hoje. Com 9 anos eu tentei, tomei um óleo minha mãe falava que era veneno não podia mexer, quando era adolescente foi com medicamento, depois de casada toda vez que eu ia ao médico ficava prestando atenção como as pessoas tinham feito, porque eu queria um jeito que eu e as crianças não sofresse, fosse rápido não queria dar trabalho pra ninguém agora que eu quero viver tô com problema de saúde, quero cuidar da minha netinha que foi abusada, a mãe dela batia nela pra ir pra escola, tentou suicídio depois que soube. Meus pais brigavam muito, me sentia culpada, é coisa lá de trás, é tanto problema, meu pai já me pediu perdão, mas... [silêncio lágrimas] eu sei quanto mau ele me fez, eu acho que tem que ser isso porque eu tenho tudo para ser feliz, eu tento porque sei que depende de mim, mas não consigo.

Psic. Jackson Maier - Neuropsicanalista e Psicoterapeuta - ACESSE AQUI


Contexto Familiar e Social


O discurso reflete em consenso trauma ocorrido na infância, ora da própria pessoa, ora em familiar; e, dentro do contexto núcleo familiar com exceção de uma paciente, os maus tratos na infância representam uma doença biopsicossocial cada vez mais comum na sociedade provocada por privação de alimentos, roupas, abrigo, negligências, agressões verbais, castigo físico entre outros. O agressor não percebe a vítima como uma pessoa, mas como objeto sem sentimentos e direitos (Amazarray & Koller, 1998; Mioto, 1997).

Muitos transtornos psiquiátricos são relacionados a eventos traumáticos ocorridos na infância, com gravidades em níveis que variam com o tipo de abuso, sua duração e o grau de relacionamento da vítima com agressor. O comprometimento da saúde mental e a futura adaptação social das vítimas alteram-se de indivíduo para indivíduo, devido às peculiaridades de cada um e conforme o tipo de violência sofrida e a capacidade de reação diante de fatos geradores de estresse (Drezett et al., 2001).

A violência pode ser desencadeada por diversos fatores, manifestando-se de formas diferentes, observa-se que, muitas vezes, a família, ao invés de ser um refúgio seguro, é o lugar que põe em risco a integridade física e emocional de seus membros (King et al., 2000; Minayo, 1998).Dados informam que 84,5% das crianças foram abusadas por agressores identificáveis, geralmente do núcleo familiar, no abuso sexual contra criança e adolescentes, a indicação do pai biológico é o que mais aparece, depois os avôs, o padrasto e, por último, vizinhos e pessoas próximas (Aded, Dalvin, Moraes, & Cavalcanti, 2006; Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência [ABRAPIA], 1997).


Atenção biopsicossocial em saúde às vítimas


Sabe-se que é um trabalho difícil, devido às condições de desenvolvimento biopsicossocial da criança e ainda devido à gravidade e complexidade dos traumas, entre eles o abuso sexual, uma violação de direito em muitas ocasiões ocorrido dentro do núcleo familiar, o que torna a situação rodeada de segredos e revitimização do paciente por aqueles que teriam a função social de protegê-los (Buss, 2000; Pfeiffer & Salvagni, 2005; Reis, 2004).

Crianças vítimas de violação de direitos refletem na sua condição exterior o que se passa no seu interior. Vítimas de violência física, apresentam por vezes corte nos lábios, pois como mecanismo de defesa quando agredidas mordem a boca para alívio da dor, outras têm o cóccix machucado, devido ao fato de se encostarem na parede quando se sentem acuadas, em outros casos é possível observar o arco íris dos hematomas característico de crianças que sofrem agressão constantemente, perda do controle do esfíncter, esses são sinais físicos possíveis de serem observados ou questionados no atendimento e podem contribuir para se dar início ao processo de intervenção.

Perceber o paciente através de diferentes olhares, e a interação desses olhares possibilita ir além das questões objetivas. Assim, compreendendo o paciente como um todo a ser tratado, se produz uma estratégia de atendimento mais eficiente, oferecido pela atenção primária, pedra angular dessa integração que pode trabalhar questões de empoderamento ao indivíduo e/ou família, para que, a partir de seu horizonte de possibilidades, ele perceba a complexidade de sua problemática e busque recursos de superação.

Conclui-se que assuntos, tais como comportamento suicida e abuso sexual, são carregados de estereótipos e representam um trabalho árduo, devido à complexidade e gravidade da questão, contudo observamos que exposição da situação traz alívio dos sintomas, favorece a minimização de danos, destaca a possibilidade de superação, dos traumas e ainda que fortalece o vínculo paciente e profissional de saúde.

Calar-se diante de uma suspeita ou confirmação de violência é negligenciar, revitimizar o paciente, faz-se necessário progredir individualmente enquanto profissional, caminhar em direção à quebra de tabus, entender que se trata de um dever ético e legal de romper o silêncio e os receios de agir diante das situações de violação de direitos.

À Atenção Primária cabe contribuir com a prevenção e tratamento da causa, desenvolvendo ações para as necessidades de saúde mental, tais como: Estudo sobre os transtornos mentais, socialização dos casos, cuidar do cuidador, fomentar junto à gestão grupos de saúde mental locais para o paciente e de composição interdisciplinar; intersetorial com representante do Conselho Local de Saúde, e ainda propor: equipe móvel de saúde mental na Atenção Primária, a cada 15 dias; diferenciar os horários de atendimento para pacientes com crianças sem local para deixá-los na ocasião dos atendimentos.

Trata se de um longo processo de trabalho a ser construído, mas que toma forma e se fortalece na dinâmica de trabalho diário ao constatar as necessidades do paciente e de seus apoiadores.

Psic. Jackson Maier - Neuropsicanalista e Psicoterapeuta - ACESSE AQUI